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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Morto

Sempre tive o poder de matar em mim. Não sei se é bom, ou se é mau. Francamente, pouco me importa. É um dado de facto.
Refiro-me à pura e simples liquidação de alguém: inexorável, inelutável.

Não consigo fazer isto sempre: só mato em mim quem significou alguma coisa. Mas este aparente paradoxo nasce de uma lógica inquebrantável: quem nunca significou nada, não é susceptível de ser morto em mim porque, já de si, significou sempre nada - em mim.

A faculdade de eliminar o outro é o correlato da importância que o "viver-com-o-outro" tem. Não somos mais do que esse "viver-com-o-outro". Tudo porque o "outro" é um predicado necessário de "nós".

Eis, pois, logo por aqui, porque é especialmente fácil matar - em nós - os que nunca se lembram do outro e vivem somente centrados em si, geralmente embevecidos.

Com isto sempre incompreendi os que necessitam de eliminar fisicamente alguém. Porque não matá-los simplesmente em nós?
É o que faço, sem dificuldade de maior.

Torna-se-me mais fácil decretar estes óbitos quando o morto era supostamente erudito mas nunca foi capaz de escrever uma linha.
Em regra, nunca ter escrito uma linha é a consequência da desvalorização dos outros: como só o "eu" (deles) interessa, vivem na presunção de que só eles compreendem, de que só eles sabem; e que os outros não merecem - ou não podem - saber. O esforço de se fazer compreender - o esforço de comunicar - deixa, assim, de fazer sentido. E, por isso, nunca escrevem ou escreveram. Fechados numa imbecilidade só igualada pela enormidade do respectivo ego.

Mas a verdade dura é que nunca escrevem (nem escreveram) por pura e simples incapacidade. Pelo absoluto falhanço em se fazerem compreender. Pelo eterno convencimento de que, quando escreverem, produzirão a essência das essências. O que jamais sucederá, por motivos óbvios. 
Porque se pudessem - e soubessem - escreveriam. Para alcançar a imortalidade que o seu amor próprio (só por si, claro) reclama. Tudo porque, no fundo, sabem que a morte física só é vencida pela presença nos outros, que ocorre também quando alguma linha, depois dessa morte, é lida.

Quando não há nada para ler, és fácil de matar.
E assim é. Numa penada.